Quando a reforma não é sinónimo do regresso a Portugal
A vida está mais cara na capital mundial do jogo, mas a vida pacata, a segurança a qualquer hora do dia e a localização estratégica de Macau foram suficientes para 'prender' ao território alguns portugueses após a reforma.
A Irene e Jorge d’Abreu, Macau abriu-lhes portas no início dos anos de 1990 que pareciam fechadas em Portugal. Hoje, ao final de quase 30 anos, já aposentados, não veem razões para deixar a cidade, “ainda que a qualidade de vida tenha decrescido com os casinos e a pressão imobiliária”.
Devem ao território uma licenciatura e a educação que proporcionaram à filha Sara. Gostam de andar “sem medo” nas ruas às três da manhã e de viajar pela China e pelo sudeste asiático.
“Reconheço que em Macau temos tido oportunidades que em Portugal de certeza que não tínhamos. Tivemos oportunidade de nos licenciarmos os dois e de proporcionarmos uma educação à nossa filha sem aqueles medos que há em Portugal”, contou Jorge, na mesma casa na ilha da Taipa onde vive com Irene há duas décadas.
Saiu da Rádio Comercial em Lisboa após a privatização do canal e juntou-se à mulher, que já estava há oito meses em Macau, em agosto de 1993, onde vivem desde então.
O percurso profissional de Jorge no antigo território administrado por Portugal é vasto e passa pela Fundação Oriente, o jornal Tribuna de Macau, o Instituto Cultural, a Direção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) e a Universidade de Macau.
O casal não receou a transferência de administração para a China, em 20 de dezembro de 1999, mas lamentou que a administração portuguesa tenha pressionado muitos funcionários a regressarem a Portugal e que não tenha colocado nos quadros aqueles que decidiram ficar.
Como consequência, apontaram, não têm reforma, apenas um subsídio para idosos na ordem dos 300 euros por mês.
“Devo tudo à China, não devo nada a Portugal”, acentuou Irene, que em Macau encontrou “uma segunda oportunidade” após sucessivas desilusões em Lisboa.
Após breves passagens na Assembleia Legislativa e na Conservatória do Registo Predial, Irene trabalhou duas décadas na Universidade de Macau, no departamento de português, “onde sempre foi valorizada” até à reforma, em 2015.
No setor privado, o regresso de Macau à China passou mais despercebido e, em sentido inverso, houve atrativos para que as pessoas ficassem, contou à Lusa António Peres Diniz, que aterrou “numa cidade completamente diferente” há 37 anos.
Foi transferido da EDP para a Companhia de Eletricidade de Macau (CEM) ao abrigo de um programa de cooperação externa e lá ficou até 2012, quando se aposentou.
“Antes da transferência, a companhia deu aos trabalhadores algumas benesses, em termos de férias pagas em Portugal (...) um pouco na tentativa de ficarmos”, recordou.
Apesar da guerra entre seitas por causa das salas dos casinos, que ocorreu antes da transição, esta “foi muito pacífica”, descreveu. Teve algum receio de que a cidade se pudesse ‘achinesar’, medo que se esbateu pouco depois.
Após a reforma não quis deixar o território, um local pequeno e “extremamente seguro”, que lhe proporciona uma boa qualidade de vida.
Hoje não prescinde dos passeios matinais e de visitar Hong Kong ao fim de semana. Tenta evitar o Cotai, faixa de casinos cuja construção apontou como a mudança mais crucial em Macau nos últimos 40 anos.
Deslumbrado pelo Oriente, Macau permitiu-lhe viajar pela China, Nepal e por outros países que pareciam inalcançáveis para quem estava em Portugal.
Foi ficando. “Uma pessoa acomoda-se”, disse, sem se mostrar arrependido.
Porém, Macau não atrai apenas aqueles que já tratam a cidade por ‘tu’ há décadas.
Marcelino Marques aterrou na capital mundial do jogo em 2011, já depois de se ter aposentado, e hoje “conhece de uma ponta à outra” esta cidade “segura, quente e húmida” que “renova a sua população todos os dias”.
“Sinto-me bem aqui. Gosto de cá estar”, admitiu o vimaranense, em entrevista à Lusa num bairro residencial onde é possível vislumbrar os novos aterros – terrenos conquistados ao mar -, que considerou surpreendentes.
Ao final de 37 anos como técnico superior na administração pública em Portugal, Marcelino veio por incentivo da mulher - que já trabalhara em Macau antes da transferência de administração - e encontrou aqui uma reforma pacífica e um bom lugar para ver crescer a filha, hoje com 13 anos.
O também ex-dirigente sindical disse ter sido “muito bem acolhido” pelos chineses, tendo já frequentado cursos de mandarim.
Tem muito tempo livre, mas é irrequieto, pelo que a ligação que tem à música desde muito novo continua a materializar-se aqui, na outra parte do mundo, onde canta e toca fado quase todas as noites.
“Todas as noites, desde há praticamente oito anos, que sou músico residente no restaurante António. Todas as noites são diferentes, com momentos interessantíssimos”, afirmou.
“Gosto de Macau nesta perspetiva: cada dia, um dia novo”, disse.
Francisca Sottomayor