Portugal quis diferenciar Macau de Hong Kong
O investigador Carlos Gaspar, que esteve nas negociações sobre a transferência de administração em Macau, recorda que Portugal quis “introduzir fatores de diferenciação” entre o território e Hong Kong, nomeadamente, quanto à nacionalidade dos locais, uma questão “complexa” que só se resolveu nas vésperas da assinatura do tratado.
Carlos Gaspar, antigo conselheiro de Mário Soares que fez parte da delegação que negociou a declaração conjunta sino-portuguesa sobre a questão de Macau, em 1987, recordou, numa entrevista à Lusa, as dificuldades colocadas pelo lado chinês, cujos diplomatas eram pouco experientes e “extremamente rígidos em termos hierárquicos”.
“Foi sempre difícil introduzir fatores de diferenciação entre Hong Kong e Macau”, afirmou, sublinhando que a delegação portuguesa queria negociar um acordo “com tudo o que estava na declaração conjunta” sino-britânica relativa a Hong Kong e duas questões adicionais: garantir a nacionalidade portuguesa para os chineses de Macau e fixar uma data de transferência diferente da de Hong Kong.
A delegação, chefiada pelo embaixador Rui Medina, incluía ainda o embaixador João de Deus Ramos (que tinha aberto a embaixada em Pequim após o estabelecimento das relações diplomáticas com a República Popular da China em 1979) e Henrique de Jesus, que tinha sido nomeado pelo primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva.
Em causa estava a negociação do tratado que estabelecia que Macau era um território chinês sob administração portuguesa e que a transferência de administração para a República Popular da China (RPC) se efetuaria em 20 de dezembro de 1999, que foi assinado a 13 de abril de 1987 (Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau).
Tanto Portugal como a China “precisavam que as coisas corressem bem”, lembrou Carlos Gaspar. Em Portugal, a conjuntura era difícil, com um governo minoritário liderado por Cavaco Silva e um Mário Soares a acabar o primeiro ano do seu primeiro mandato presidencial.
“Era muito importante que as negociações corressem bem do ponto de vista político e que fossem reconhecidas como um sucesso", mas a comitiva portuguesa não queria "dar a entender à parte chinesa que existia esse empenho porque é a pior posição negocial possível”, contou o agora investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).
Mas os chineses sentiam ainda uma pressão maior: com um congresso agendado para esse ano, o secretário-geral do partido comunista queria poder anunciar que “Hong Kong e Macau se reuniriam à pátria-mãe até ao fim do século”.
Essa urgência, segundo Carlos Gaspar, “explica provavelmente” que Portugal conseguisse garantir a nacionalidade portuguesa para os locais e outras questões como a das liberdades, direitos e garantias, o estatuto político e institucional e a liberdade religiosa e de culto.
“A partir da altura em que a parte chinesa percebeu que os acordos não iam ser iguais, não só nestas questões fundamentais, mas também noutras questões importantes, foi possível, penosamente, avançar até se alcançarem os termos da declaração conjunta”, destacou.
Porquê 1999?
Portugal queria também demarcar-se da data da declaração sino-britânica: “A data de Hong Kong era definida pelo termo dos acordos de arrendamento relativos aos Novos Territórios que tinham completado a colónia de Hong Kong no fim do século XIX, era uma data sino-britânica. O que a parte portuguesa disse à parte chinesa foi que todas as datas eram boas, exceto uma que não tinha nada a ver com as relações entre Portugal e a China”.
Carlos Gaspar salientou que foi “um acordo difícil para Portugal, pois tratava-se de ceder um território português”, procurando fazê-lo “nos termos mais corretos num contexto enquadrado pela declaração sino-britânica” que definiu os termos da devolução de Hong Kong à China.
“A partir do momento em que há um acordo entre o Reino Unido e a China sobre Hong Kong ficou claro para a diplomacia portuguesa que Macau era a seguir. Não havia qualquer ilusão sobre essa matéria”, disse.
A integração de Macau na República Popular da China “era um objetivo da política de reunificação” chinesa, enunciada reiteradamente desde a sua fundação, e o compromisso para resolver foi uma condição “sine qua non” para o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países em fevereiro de 1979.
Esta posição dizia respeito a Macau, Portugal e China, mas teve também consequências para Hong Kong, deixando “uma porta aberta no terreno diplomático para se iniciar o processo de reunificação da China, que era um dos objetivos fundamentais do programa de modernização que [o Presidente] Deng Xiaoping tinha anunciado em dezembro de 1978”, explicou Carlos Gaspar.
Raquel Rio