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Opinião: Pela China dentro, sob o signo de Fernando Pessoa

 

Quando aterrei em Pequim pela primeira vez não sabia uma palavra de chinês, nem sabia sequer que os chineses não chamam ao seu país China, mas sim Zhong Guo, que significa Império do Meio ou centro do mundo. Portugal também tem outro nome: Pu Tao Ya.

Os anos foram passando (dezanove, no total) e, frequentemente, tinha a sensação que sabia cada vez menos. O sistema político, muito mais opaco do que nos países europeus, era igualmente uma caixa de surpresas. Tanta coisa que não sabia ou imaginava! A história de Lian Yue, por exemplo.

Entrevistei Lian Yue em novembro de 2008, um ano depois de a rádio Deutsche Welle (Voz da Alemanha) o ter distinguido como autor do "melhor blogue chinês". A distinção estava relacionada com o papel do blogue de Lian Yue nos protestos contra a construção de uma petroquímica em Xiamen, na costa leste do país. Ele tinha então 37 anos. O blogue chamava-se "Oitavo Continente", um nome inspirado numa passagem do "Livro do Desassossego".

"Pessoa e Kafka são dos escritores estrangeiros que mais admiro", começou por dizer Lian Yue. E comparando os dois, considerou o primeiro "mais moderno e criativo".

Antigo jornalista de um conhecido semanário de Cantão, formado em literatura chinesa, Lian Yue contou que descobrira Pessoa através de uma tradução do "Livro do Desassossego" assinada pelo romancista Han Shaogong: "Pessoa é brilhante. É um autor fora do comum e que mostra a beleza do mundo". Era também o único autor português que Lian Yue conhecia: "Há poucas traduções de escritores portugueses na China. De Portugal, o que se conhece melhor é o futebol".

Aquela tradução do "Livro do Desassossego", feita a partir da versão em inglês, teve cinco edições no espaço de uma década. Han Shaogang "é um dos maiores escritores chineses contemporâneos e por isso o livro teve muito sucesso nos meios intelectuais", explicou Yao Feng, poeta radicado em Macau, que já traduziu diretamente do português poemas de Pessoa e de Eugénio de Andrade.

Min Xuefei, professora da Universidade de Pequim (Beida) e também tradutora de Pessoa, considera o poeta português "um autor universal, com uma filosofia que por vezes faz lembrar o taoismo e o budismo".

O "Blogue do Desassossego", o título (óbvio) que dei à entrevista com Lian Yue, é uma história da China contemporânea e também da presença portuguesa naquele imenso país. Há mais, muitas mais, em todas as artes e em todas as áreas, do Desporto à Economia. Temos apenas de as descobrir e contar o que vimos e ouvimos com verbos simples, objetividade e estilo.

 

António Caeiro, Antigo delegado da Agência Lusa em Pequim