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Lusodescendentes de Hong Kong com ‘um olho’ no estrangeiro

epaselect epa08006023 A pro-democracy protester prepares to throw a petrol bomb  as they are confronted by police on the march on Salisbury Road towards Polytechnic University, in Hong Kong, China, 18 November 2019. Hong Kong is in its sixth month of mass protests, which were originally triggered by a now withdrawn extradition bill, and have since turned into a wider pro-democracy movement  EPA/FAZRY ISMAIL

Após seis meses de protestos em Hong Kong, os lusodescendentes ainda não desesperam, disse o presidente do Club Lusitano, Patrick Rozario, uma vez que a grande maioria detém um passaporte estrangeiro que lhes permitiria emigrar.

O cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong, Paulo Cunha Alves, disse na quarta-feira à Lusa que existem “cerca de 20.000 indivíduos em Hong Kong com passaporte português”, sendo que apenas “entre 500 e 1.000 serão portugueses expatriados”.

A maior parte são lusodescendentes, que começaram a chegar à cidade assim que foi fundada pelos ingleses, há quase 180 anos. O potencial de Hong Kong atraiu não apenas macaenses, mas também, mais tarde, membros da então numerosa comunidade portuguesa em Xangai.

É o caso de Francisco da Rosa, que nasceu em Xangai e cresceu entre Macau e Hong Kong. “Hong Kong é a nossa casa e nós sentimos o seu sofrimento”, afirmou à Lusa o investigador, que está atualmente a preparar uma exposição sobre a presença dos lusodescendentes na cidade, que deverá abrir ao público no Museu de História de Hong Kong em 2022.

A comunidade tem raízes centenárias na região. “[Mas] não nos sentimos tão arraigados a Hong Kong” como os chineses locais, explicou à Lusa Patrick Rozario. Hong Kong “tem-se tornado uma cidade mais chinesa”, sublinhou o presidente do Club Lusitano.

O número de lusodescendentes em Hong Kong começou a cair a partir de 1967, quando o impacto da Revolução Cultural na China continental se começou a fazer sentir em Hong Kong, onde chegou a haver atentados terroristas.

A crise mundial do petróleo, em 1973, também encorajou os lusodescendentes a emigrar, nomeadamente para os Estados Unidos, Austrália e Europa, incluindo Portugal.

“Poucas famílias portuguesas têm três gerações a viver em Hong Kong”, destacou Patrick Rozario, que foi estudar para o Canadá, onde acabou por viver durante 20 anos. “Como eu, muitos estão cá sobretudo para avançar na carreira e têm os filhos no estrangeiro”, explicou o contabilista.

Tal como Patrick, que têm a nacionalidade canadiana, a maioria dos lusodescendentes em Hong Kong tem um ou mais passaportes estrangeiros. “Muitos membros da nossa comunidade têm uma perspetiva mais internacional, têm casa em Cascais ou em São Francisco [nos Estados Unidos] e por isso podem sempre partir quando quiserem”, apontou.

Curiosamente, o presidente do Club Lusitano não tem nacionalidade portuguesa. “Nos anos 60 os meus pais tinham muito receio de que eu fosse chamado à tropa e fosse parar a Angola”, para combater na Guerra do Ultramar”, explicou. “Por isso mesmo eles preferiram naturalizar-se ingleses”, acrescentou.

Patrick começou há vários anos, muito antes do início dos protestos, a tentar reaver o passaporte português. “Há muitos de nós a tentar fazer o mesmo, porque mesmo que já não saibamos falar a língua, eu pessoalmente continuo a sentir que sou macaense e que a nacionalidade portuguesa nos dá essa identidade”, frisou.

 

Portugueses divididos entre violência policial e movimento romanceado

 

A atuação da polícia, acusada de usar força excessiva, levou uma portuguesa a juntar-se aos protestos. Mas uma outra portuguesa nascida em Hong Kong argumentou que os manifestantes estão a romancear um movimento cada vez mais violento.

Viena Mak Hei-man sugeriu um café escondido num terceiro andar de um edifício residencial numa zona de Hong Kong, tradicionalmente para turistas às compras, para falar. “É um 'café amarelo’”, o que significa que apoia os protestos, oferecendo até descontos aos manifestantes, explicou à Lusa a jovem portuguesa.

Os protestos surgiram em oposição a uma controversa proposta de lei, que permitiria que a chefe do Executivo e os tribunais de Hong Kong processassem pedidos de extradição de suspeitos de crimes para jurisdições sem acordos prévios, como é o caso da China continental.

Para Viena, membro da Sociedade para a Proteção dos Golfinhos de Hong Kong, o receio era real. Em janeiro, foi a Xiamen, uma cidade no sudeste da China, proferir uma palestra sobre o negócio de criação de golfinhos em cativeiro, para serem vendidos a parques aquáticos de todo o mundo.

“Não achei que estivesse em perigo, mas com esta lei, já não iria lá porque é perigoso ser um ambientalista e estar contra esta indústria”, argumentou Viena.

“Todos sabemos”, disse, “as coisas terríveis que acontecem no sistema judicial chinês”, descrito por dissidentes como opaco, politizado e incapaz de garantir a salvaguarda dos direitos humanos.

Mesmo após a maior manifestação de sempre em Hong Kong, que terá juntado a 16 de junho dois milhões de pessoas, segundo a organização, praticamente um terço da população, as autoridades recusaram-se a dar o 'braço a torcer'.

A atuação do Governo de Hong Kong tem sido “um desastre completo”, lamentou a também cidadã portuguesa Georgine Leung, nascida na cidade.

A chefe do Executivo, Carrie Lam, começou por suspender a proposta em julho e acabou mesmo por a retirar em Setembro. Mas a situação não acalmou, salientou Viena Mak, devido “à ridícula resposta do Governo”, que rejeitou as restantes quatro exigências do movimento, entre as quais a criação de uma comissão de inquérito independente para investigar a atuação da polícia, que é acusada de usar força excessiva.

“Foi por isso que me juntei aos protestos, devida à forma como a polícia tratou, não apenas os que estavam na linha da frente, mas também aqueles na retaguarda. Mesmo os jovens, os idosos, os jornalistas foram tratados como baratas”, recordou, usando um insulto usado pela polícia contra os manifestantes.

A jovem tem ajudado a transportar e distribuir material durante os protestos, incluindo guarda-chuvas e 'kits' de primeiros socorros.

Viena emociona-se ao recordar os acontecimentos de 12 de junho, quando os protestos cercaram o Conselho Legislativo, o parlamento de Hong Kong. “Eu vi a primeira vez que a polícia disparou gás lacrimogéneo. Nessa altura achávamos que tudo era possível, mas desde então já aconteceu tanta coisa”, afirmou.

Na terça-feira passada o 'campus' da Universidade Chinesa de Hong Kong foi palco de alguns dos combates mais violentos desde que os protestos começaram, com os estudantes a lançarem centenas de bombas incendiárias contra a polícia, que respondeu com balas de borracha e granadas de gás lacrimogéneo.

Isto um dia depois da polícia ter baleado dois manifestantes, um dos quais teve de ser operado de urgência, e de um homem ter ficado em estado crítico após ter sido regado com um líquido inflamável e incendiado por alegados manifestantes.

“A maioria dos meus amigos continua a ser fortemente a favor dos protestos”, declarou Georgine Leung. “Mas a verdade é que os manifestantes estão a romancear tudo o que se está a passar”, acrescentou a mãe de duas crianças, uma delas afetada pela suspensão das aulas já decretada em Hong Kong.

Viena Mak não vê um fim para o caos vivido na cidade. Tal como aconteceu com a chamada “revolução dos guarda-chuvas”, em 2014, admitiu que é improvável que o Governo aceite as exigências dos manifestantes, sobretudo no que toca à implementação do sufrágio universal para a eleição do chefe do Executivo e do Conselho Legislativo. Ainda assim, a jovem nascida em Macau opta pela filosofia: “podemos perder esta guerra, mas os nossos ideais vão perdurar”.

Um estoicismo que não descansa os pais de Viena, que ainda vivem em Macau, onde está em vigor desde 2009 uma lei de defesa da segurança do Estado que pune “qualquer ato de traição à pátria, de secessão, de sedição, de subversão contra o Governo popular central”.

“Eles pedem-me frequentemente para não colocar no Facebook certas coisas relacionadas com os protestos, porque têm medo que seja detida em Macau”, explicou.

Vítor Quintã