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Da utopia maoista ao pragmatismo de Deng, Partido Comunista mantém poder absoluto

epaselect epa04492890 A Chinese government supporter is seen outside Parliament House in Canberra, Australia, 17 November 2014. Chinese President Xi Jinping, who attended the G20 Leaders Summit in Brisbane, will be delivering an address to the Australian parliament on 17 November.  EPA/LUKAS COCH AUSTRALIA AND NEW ZEALAND OUT

 

Fundada há 70 anos com a promessa de erguer uma sociedade integralmente nova, a República Popular da China tem uma História composta por períodos de construção e destruição, experimentação e fracassos, e reviravoltas drásticas.

"Creio que não há quase nenhuma outra história no mundo tão dramática como a chinesa", descreve à Lusa Klaus Mühlhahn, professor de História e Cultura da China e vice-presidente da Universidade Livre de Berlim.

Em 01 de outubro de 1949, após uma longa guerra contra o Governo nacionalista, Mao Zedong proclamou o nascimento da República Popular da China: "O povo chinês finalmente levantou-se".

Para a "nova China", Mao visionou uma sociedade sem classes, assente numa cultura e modelo de desenvolvimento que beneficiariam todos os chineses.

Mas a tomada do poder pelos comunistas nasceu de uma vitória militar, assistida pela União Soviética, e não de uma revolta popular, o que contribuiu para a "constante insegurança e brutalidade" do regime, explica Mühlhahn.

"Noventa e cinco por cento dos chineses em 1949 não sabiam o que era o comunismo nem tinham sequer ouvido falar sobre uma revolução comunista", diz.

No início dos anos 1950, o novo Estado, que herdou um país destruído pela ocupação japonesa e subsequente guerra civil, ergueu infraestruturas, um sistema nacional de educação e saúde, e procedeu à reforma agrária.

Mas Mao queria "transformar completamente a sociedade chinesa", nota Mühlhahn.

As instituições existentes antes de 1949, incluindo organizações locais, aldeias, mercados ou empresas privadas, foram destruídas.

No entanto, as novas instituições - comunas, empresas estatais ou agências de planeamento do governo -, permaneceram fracas, coercivas e ineficientes.

Os esforços para acelerar a transição para o comunismo levaram a políticas desastrosas.

Lançada em 1958, a campanha de coletivização dos meios de produção e industrialização intitulada "Grande Salto em Frente" causou cerca de trinta milhões de mortes.

Mao teve então de ceder a chefia do Estado, mas, em 1966, lançou a Revolução Cultural, para "aprofundar a luta de classes sob a ditadura proletária".

Durante uma década, dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, presas e torturadas, acusadas de serem "inimigos de classe".

"Quando Mao faleceu, em 1976, a utopia do comunismo e da transformação radical parecia tão distante como em 1949", realça Mühlhahn. "A energia do país esgotou-se e as esperanças dissiparam-se".

Em 1978, Deng Xiaoping, um antigo "seguidor do capitalismo", afastado duas vezes por Mao, assumiu o poder e o desenvolvimento económico passou a ser "a tarefa central".

"A política de Reforma e Abertura permitiu um maior grau de inclusão e abertura, que ofereceu novas oportunidades a camponeses e empreendedores", explica Mühlhahn.

Foram introduzidas também eleições a nível local e houve uma revitalização de sistemas democráticos no interior do Partido Comunista.

Seguiu-se então um "milagre" sem precedentes na História moderna: no espaço de três décadas, a China, outrora mergulhada na pobreza e no isolamento, converteu-se na segunda maior economia mundial.

O "papel dirigente" do Partido Comunista continuou a ser "um princípio cardeal" e os grupos estatais continuaram a dominar os setores chave da economia, mas as reformas feitas por Deng apoiaram a República Popular numa base institucional e de procedimentos, que garantiu a sucessão pacífica de duas gerações de líderes.

Contudo, o atual Presidente chinês, Xi Jinping, que ascendeu ao poder em 2013, reconcentrou o poder em si, desmantelando o sistema herdado.

Xi aboliu já o limite de mandatos para o seu cargo, com uma revisão constitucional, e criou um organismo com poder equivalente ao Executivo e Judicial - a Comissão Nacional de Supervisão.

Sob a sua liderança, o Partido Comunista voltou a penetrar na burocracia e na vida social e económica da China.

Conseguirá o país modernizar-se e assegurar contínua ascensão económica apesar da ausência de reformas políticas? "É uma questão em aberto", admite Klaus Mühlhahn, que cita Confúcio, um dos maiores sábios da China Antiga: "aos setenta, segui o meu coração, sem passar dos limites".

"A China aprendeu a seguir os seus desejos de riqueza e poder com entusiasmo e inteligência", compara, "mas não creio que tenha estabelecido um sistema político que impeça os seus líderes de cruzarem a linha".

 

Partido Comunista exibe confiança

 

Quando celebra sete décadas de governação, o Partido Comunista Chinês (PCC) continua a abdicar de reformas políticas e defende agora o seu "modelo" como solução para países em desenvolvimento, mas fragilidades persistem sob a capa autoritária, defendem analistas.

O rápido desenvolvimento económico das últimas décadas e a forma como contornou a crise financeira global de 2008 injetaram redobrada confiança em Pequim de que o seu modelo constitui uma alternativa à democracia liberal.

"A China oferece uma nova opção para países que desejam acelerar o seu desenvolvimento enquanto preservam a sua independência", defendeu o Presidente chinês, Xi Jinping, em 2017.

A República Popular da China celebra na terça-feira os 70 anos da sua fundação pelo dirigente Mao Zedong.

Só nos últimos 20 anos, a riqueza 'per capita' da China quadruplicou, num "milagre" sem precedentes na História moderna.

Num esforço liderado pelo Estado, a China ameaça destronar os Estados Unidos da posição que mantêm há 70 anos como líderes em inovação científica e tecnológica.

No entanto, o reforço do caráter totalitário do regime, sob a presidência de Xi, abriu um "precedente muito perigoso para o futuro", descreveu o sinólogo norte-americano David Shambaugh.

Deng Xiaoping, o arquiteto-chefe das reformas económicas que abriram a China ao mundo, procurou basear a tomada de decisão num processo de consultas, separar o Partido do Governo e descentralizar a autoridade pelas províncias e localidades, visando evitar os excessos maoistas que quase destruíram o país.

Xi reverteu aquelas normas.

Assombrado pela primavera árabe, que derrubou governos aparentemente invencíveis, e, sobretudo, pela implosão da decrépita União Soviética, em 1991, o Partido Comunista, sob a sua direção, voltou nos últimos anos a penetrar na vida política, social e económica da China.

"Proporcionalmente, o Partido Comunista Soviético tinha mais membros do que nós, mas ninguém foi homem o suficiente para se levantar e resistir", alertou Xi Jinping, nas vésperas de ascender ao poder.

Desde então, o aparelho de segurança do regime passou a contar com cerca de 200 milhões de câmaras de vigilância, instaladas nas principais cidades do país, segundo dados oficiais, muitas dotadas de reconhecimento facial.

Uma campanha contra dissidentes resultou já na detenção de 250 advogados ou ativistas dos direitos humanos, segundo organizações não governamentais. O Partido estabeleceu também comités em 70% das empresas privadas e ‘joint ventures’.

Dentro do PCC, Xi lançou a mais ampla campanha anticorrupção na história da China comunista, resultando, até à data, na punição de mais de 1,5 milhões de funcionários, incluindo centenas de altos quadros e altas patentes do exército, segundo o próprio partido.

A campanha anticorrupção antecedeu uma concentração de poder sem paralelo nas últimas décadas.

Em 2017, Xi Jinping aboliu o limite de mandatos para o seu cargo, criou um organismo com poder equivalente ao Executivo e Judicial - a Comissão Nacional de Supervisão -, para supervisionar a aplicação das suas políticas, e promoveu aliados a posições chave do regime.

David Shambaugh não tem dúvidas: "Xi é um líder genuinamente duro, que exala convicção e confiança, mas essa firmeza esconde um sistema político e partidário extremamente frágil por dentro", argumenta.

Para o sinólogo, o crescente caráter repressivo do regime e a emigração das elites económicas ilustram as fraquezas do sistema de partido único, corroído por clientelismo, corrupção e ausência de primado da lei.

"Apesar das aparências, o sistema político da China está gravemente fraturado e ninguém o sabe melhor do que o próprio Partido Comunista", argumenta.

"Xi Jinping espera que a repressão contra dissidentes e o combate à corrupção reforcem o domínio do Partido (…), mas o seu despotismo está a pressionar fortemente o sistema e a sociedade chinesa - e aproximá-la do ponto de rutura", aponta.

A visão do poder de Xi como um mecanismo opressivo foi, segundo o próprio, forjada durante a adolescência, passada no árido e pobre noroeste chinês, seguindo um fluxo de jovens urbanos para as aldeias do interior para "aprenderem com os camponeses", parte de uma radical campanha de massas lançada por Mao Zedong.

"As pessoas que têm pouca experiência com o poder, aqueles que estão longe dele, tendem a considerá-lo algo de misterioso e nobre", disse numa entrevista, publicada em 2000, quando era governador da província de Fujian.

"Mas eu vejo além das coisas superficiais: o poder, as flores, a glória e os aplausos. Eu vejo centros de detenção e a volatilidade da natureza humana. Isso deu-me uma compreensão da política a um nível mais profundo", realçou.

Mas será também esta desconfiança na afirmação e liberdade do indivíduo que continuará a levantar incógnitas sobre o futuro da República Popular da China, no ano em que ultrapassa em longevidade a antiga União Soviética.

"Quando a empatia humana começar a sobrepor-se à autoridade ossificada, o fim do comunismo chinês terá realmente começado", conclui Shambaugh.